quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Mantegna Tarot

 Os Tarots de Mantegna (Andrea Mantegna), datado por volta de 1470,  constituem uma da mais célebres e mais enigmáticas séries de estampas dos primórdios da gravura italiana. Seu título usual é equivocado. De fato, ele nem é um jogo de Tarô, nem uma criação de Mantegna.  Existem algumas versões disponíveis para compra e para consulta deste baralho, algumas das quais estão retratadas aqui, já outras são raras ou já se encontram esgotadas e só estão acessíveis em museus e coleções de tarólogos e artistas esotéricos.













Seu atrativo artístico e seu interesse iconográfico suscitaram inúmeras pesquisas que levaram, porém, a diferentes atribuições e interpretações muitas vezes contraditórias.
Esse conjunto de gravuras seduz pelas suas múltiplas facetas. Foi qualificado como jogo didático, jogo enciclopédico, jogo edificante, jogo iniciático, jogo lúdico, passatempo para as pessoas comuns…














Composto por cinqüenta estampas numeradas em cifras romanas e arábicas, intituladas num dialeto próximo aos de Veneza e Ferrara, ele está dividido em cinco séries de dez figuras cada. Essas séries são designadas pelas letras E, D, C, B e A. A sucessão das letras, que é oposta à da numeração, estimula o percorrer o conjunto nos dois sentidos.



Cada série é consagrada a um tema específico:

1 a 10 — E: A hierarquia da Sociedade e a Condição Humana

11 a 20 — D: As Musas e Apolo, O Divino Líder 

21 a 30 — C: As Artes Liberais e as Ciências 

31 a 40 — B: Os princípios Cósmicos e as Sete Virtudes

41 a 50 — A: Os Sete Planetas e as Esferas, ou Sistema Celestial.









As seqüência de estampas da Renascença italiana, que aqui reproduziremos, foi retirada de um exemplar conservado na Biblioteca Nacional da França, sob a forma de Mutus Liber, um Livro Mudo, ou seja, um livro sem texto, com cinqüenta buris realçados a ouro.

O título de Tarot, comumente dado a esse conjunto, é compreensível. A forma retangular das estampas, sua borda idêntica e regular, a representação de uma figura isolada que se destaca sobre um fundo liso, sem ornamentos, correspondem à figuração dos jogos de cartas. No entanto, entre a quinzena de exemplares conservados, dos quais nove estão completos, nenhum chegou colado a um papel forte ou cartolina. Por outro lado, quatro deles estão montados sob a forma de livro. O propósito do criador desse conjunto não era, por certo, a manipulação freqüente das imagens.


Qual seria, então, a origem, o sentido e o destino desse “jogo”?

Trata-se, de fato, de um álbum de imagens que precisa ser decifrado. É necessário um conhecimento aprofundado da cultura medieval e humanista para descobrir a chave dessa mensagem desenhada, traduzida em alegorias, símbolos e atributos de diversas origens. A linguagem da Antiguidade pagã, redescoberta no período da criação desse jogo, mistura-se à linguagem cristã da Idade Média.

Muitos jogos desse período consistiam em ensinamentos cuja revelação era reservada àqueles que se dispusessem a trabalhar sobre os temas. Muitos níveis de leitura podiam ser percebidos de acordo com o grau de conhecimento de cada um.

Os quatro significados da Escritura, segundo Dante Alighieri, podem ser aplicados como regras fundamentais do jogo: a primeira é literal, a segunda é alegórica, a terceira moral, a quarta anagógica, ou seja, passagem do literal ao místico. Os habituados a esses exercícios do intelecto descobririam todas as sutilezas ocultas. Isso correspondia aos propósitos dos humanistas que pretendiam utilizar uma linguagem visual para transmitir os conhecimentos.
Vários jogos educativos e edificantes existiam nesse época e alguns deles foram conservados. É provável que o Tarot de Mantegna expresse a visão de um artista com o propósito de traduzir o pensamento de um ou de vários humanistas.





No mesmo espírito do Tarot de Mantegna, grandes conjuntos decorativos de caráter enciclopédico ou edificantes, foram criados nas igrejas e nos palácios. São incontáveis as alegorias, com seus atributos próprios, divisas, emblemas e símbolos. Conhecidos artistas deixaram belos testemunhos: Gioto, que inaugurou esse gênero no início do século 14, com As Virtudes e os Vícios, na Capela da Arena de Pádua, e com as Sete Artes Liberais, na Capela dos Espanhóis de Santa Maria, em Florença. E não faltam exemplos extraordinários entre os quais estão os afrescos do Palácio Schiffanoia, por Borso d’Este (1413–1471); a decoração da Villa Lemmmi, em 1483, por Leonardo da Vinci, com Vênus e suas Sete Ninfas e as Sete Artes Liberais.
O Templo de Malatesta, em Rimini, decorado por volta de 1450 por Agostino di Duccio, Matteo de Pasti e Francesco Laurana, associam as Virtudes, os Profetas, as Sibilas, as Artes liberais e os signos do Zodíaco e dos Planetas. Os baixos-relevos de Duccio estão estilisticamente muito próximos das figuras dos Tarots de Mantegna, pelos panejamentos e movimentos das figuras.


Desde o século 11 eram estabelecidas relações entre os sete Planetas e as sete Virtudes. Dante Alighieri (1265–1321), por sua vez, colocou os Planetas em correspondência com as Artes liberais, o que significa que o saber corresponde ao sistema astrológico.

Marsile Ficin, assim escreveu em seu tratado De Vita: “Do mesmo modo que as virtudes de nossa alma são aplicadas a todos os membros do corpo pelo espírito vital, assim também a virtude da alma do mundo — por meio da quinta-essência, que é ativa no corpo do mundo, tal como um espírito vital — estende-se por todos os seres e suas virtudes penetram principalmente naqueles que mais aspiraram por esse espírito”







Dentre as cinqüenta figuras do Tarot de Mantegna, vinte e duas delas evocam as cartas dos tarôs clássicos, tanto pelos nomes, como pela semelhança iconográfica ou significado. O Imperador, o Papa, as três Virtudes Cardeais (Justiça, Força e Temperança), a Lua e o Sol correspondem aos trunfos (arcanos maiores) de mesmo nome.

O Rei, o Cavaleiro, o Valete têm a ver com as figuras dos naipes (arcanos menores). Misero, Venus, Marte e Saturno lembram a representação do Louco, da Estrela, do Carro, do Eremita. As gravuras da Prima Causa e de Jupiter ligam-se por significados comuns à carta do Mundo no tarô clássico. Por fim, a quarta Virtude cardinal, a Prudência, e as três teologais — Fé, Esperança e Caridade — aparecem no Minchiate de Florença. Podemos ainda acrescentar a todas essa analogias uma iconografia de certas figuras muito próximas à do jogo de tarô executado para a família Visconti, em 1450: o Rei, o Imperador, o Papa e o Valete.


Numa visão de conjunto das cinqüenta cartas do Tarot de Mantegna podemos identificar dois percursos possíveis. Um deles é ascendente, que conduz a criatura humana por degraus sucessivos, de um estado mais inferior (Misero) até Deus (Prima Causa). O outro percurso se efetua pela transmissão do poder divino, etapa por etapa, até o homem. É uma realização, um acesso ao sobrenatural mediante a iniciativa individual e o conhecimento.



1 a 10 — E: A hierarquia da sociedade e a condição humana:







O Mendigo




O Servo




O Artesão




O Comerciante




O Nobre




O Cavaleiro




O Doge




O Rei




O Imperador




O Papa




11 a 20 — D: As Musas e Apollo, O Divino Líder:







Calíope




Urânia




Terpsícore




Erato




Polímnia




Thalia




Melpômene




Euterpe




Clio




Apollo






21 a 30 — C: As artes liberais e as ciências:







Gramática




Lógica




Retórica




Geometria




Aritmética




Música





Poesia




Filosofia




Astrologia





Teologia






31 a 40 — B: Os princípios cósmicos e as sete virtudes:







Astronomia




Cronologia




Cosmologia




Temperança




Prudência






Força





Justiça




Caridade




Esperança











41 a 50 — A: Os sete planetas e as esferas:






A Lua




Mercúrio




Vênus




O Sol




Marte




Júpiter 




Saturno




A Oitava Esfera




Primum Mobile




A Causa Primeira











Como é magicko este Universo do Tarô, não é mesmo?





As gravuras e informações sobre o Tarot de Mantegna foram retiradas de:
Suite d’Estampes de la Renaissance Italiene dite Tarots de Mantegna
ou Jeu du Gouvernement du Monde au Quatrocento, vers 1465.
Garches-França, Éditions Arnaud Seydoux, 1985.
Posfácio de Laure Beumont-Maillet, Diretora do Dep. Estampas da Biblioteca Nacional da França.
Apresentação de História da Arte por Gisèle Lambert, do Conselho de Estampas da BNF.




Você pode encontrar mais informações sobre este jogo e as cartas Mantegna, no livro "A Chave Simbólica Do Tarô", do autor Arthur Edward Waite, Editora Ardane. Mais precisamente das páginas 45 à 55. (livro disponível no site da Ardane e Amazon).